É estranho lembrar

Publicado em , por macaco

É estranho lembrar-me assim de coisas que ainda não aconteceram.
Normalmente isto não se passa, mas de vez em quando tenho memórias nítidas de coisas que nunca aconteceram e que suponho sejam visões do futuro.
Não acredito em fantasias de vidência ou horóscopos, percepção extra sensorial e cartomancia. O que é facto é que sou assaltado, se bem que ocasionalmente, por estas imagens etéreas de acontecimentos que acredito serem futuros.
Não são acontecimentos particularmente importantes nem esclarecedores, são só cenas isoladas de pessoas que não conheço a fazerem coisas vulgares em sítios onde nunca estive. Mas vou lá estar. Não seria possível a minha memória guardar recordações de coisas e lugares que não conhecerei.
Não fiz nada de especial hoje e isso irrita-me.
Passei o dia todo em branco. Fartei-me de ver televisão, o que, para mim, é a actividade mais inútil do mundo, não saí à rua nem por um minuto.
Não é estranho?
Não sair, de todo, à rua?
Nos dias em que não saio à rua e também não faço nada de especial em casa parece-me que não existi. Como se tivesse consciência do meu próprio corpo, uma consciência maior das suas necessidades, da fome, do sono, da vontade de urinar, mas não uma consciência de mim próprio. Como não sou religioso, esotérico, científico ou coisa nenhuma, a não ser, eventualmente, céptico, não consigo explicar bem o que sinto. Como não tenho (na minha opinião), alma ou espírito ou self ou seja o que for, não consigo definir bem aquilo de que não tenho consciência. Por isso digo que não tenho consciência de mim próprio e acho que se percebe bem o que quero dizer.
Agora são para aí cinco da manhã e estou outra vez acordado, sem fazer nada.
A diferença em relação a um dia normal é que não estou a alambazar-me com comidas excessivamente gordurosas que aumentam a minha autoconsciência física, nunca fazendo nada, porém, para alimentar qualquer sensação de mim próprio.
Continuo a não existir.
No fundo é um grande incómodo, é como ter um aborrecido animal de estimação ou um avô muito velho, que esteja dependente de nós 24 horas por dia. Tenho que tratar do meu próprio corpo, sem compreender porquê, uma vez que não consigo jurar a pés juntos que eu de facto exista.
Parece-me que estou a ficar com sono.
Não tenho amigos. Não se trata de auto-piedade, simplesmente constato um facto: não tenho amigos.
Será que me sinto só?
Solitário?
Nesse caso, será que a solidão tem alguma responsabilidade neste meu não existir?
Às vezes ponho-me a pensar nas coisas mais estranhas e fico aborrecido porque não arranjo resposta para as minhas perguntas. Porque será que os escritores escrevem em capítulos? Não era preciso. É estranho pôr capítulos assim nas coisas, nas histórias e nas vidas dos personagens e das famílias e amigos deles. E inimigos, também, às vezes há inimigos.
Se calhar se tivesse alguém com quem conversar não passava tanto tempo a pensar nestas coisas. Mas são preocupantes, acho eu. Acho que mesmo uma pessoa rodeada de gente com quem falar provavelmente se preocuparia com esta coisa dos capítulos e outras coisas com que também me preocupo.
São seis e meia e detesto ver o Sol nascer.
O tempo é realmente uma coisa que não se recupera, não volta para trás e frases-cliché desse género. Mas choca-me profundamente aperceber-me de que perdi uma noite. Que ela fugiu.
Sento-me, espantado, na beira da cama e olho lá para fora para aquele elipsóide amarelado que surge lentamente no horizonte e não me parece possível que a noite já tenha chegado ao fim, afinal, onde se meteu?
Vou vestir a gabardina e pôr o chapéu que me deu a minha avó, que é capaz de estar frio a esta hora. Acho que vou dar uma volta pela cidade.
Mas se calhar não é boa ideia. Enfim, corro os meus riscos, vou mesmo…

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