E porque não?

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Inclinou-se, apoiando-se no gradeamento da varanda. Sentia o vento cortar-lhe a face e a roupa era decididamente inadequada à descida de temperatura que se verificara com o anoitecer.

Olhou a paisagem da cidade, sem a ver. Olhou, simplesmente, com os olhos vazios, um canal directo para a alma; o que quer que ela fosse, onde quer que ela estivesse.

Com as pontas dos dedos, alcançou o copo de whiskey de cima da pequena mesa de ferro e engoliu um trago, depois outro. Deixou que o fogo do álcool traçasse um caminho de calor por entre o gelo das suas entranhas. Imaginou-se seguindo esse rasto, como se na sua luz pudesse vislumbrar o que a escuridão lhe ocultava. Mas em vão. Nada o seu ser lhe queria mostrar, nada tinha para lhe dizer.

Tirou um morango da taça e mordeu-o. Sentiu o doce ácido do fruto nas gengivas e o perfume intenso nas narinas. Desejou que lhe mostrassem alguma verdade, que pelo menos lhe dessem uma pista… Não obteve eco. Não conseguiu ligação. Sabia apenas da sua completa inexistência. Nada mais, nada real. O calor, a luz, a dissolução na sua boca, nada.

A cidade, em baixo, serena. Aquele tom de laranja, contra um céu não suficientemente preto. E ele ali, naquele parapeito apoiado, cotovelos marcados pela pedra, orelhas geladas pelo vento, agonia, felicidade, indecisão. Nada.

Da inexistência à inexistência que distância irá? Que justificação necessitaria, para a medir?

Com a mão dentro dos calções, coçou a virilha direita; com os dedos, beliscou o mamilo, num gesto de hábito criado na solidão. O copo de whiskey, já vazio, em cima da mesa. Mais um morango.

Atirou-se da varanda até se estatelar, umas dezenas de metros abaixo. Ou não se atirou. Não achou que fizesse diferença. Pegou na garrafa e bebeu mais um trago, directamente do gargalo. Comeu outro morango e percebeu como funcionava a morte.

Foi para dentro e fechou a janela. Deitou-se, para dormir. Amanhã, inexistirá novamente… E porque não?

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O Acordo Macacográfico

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Bom, se o Acordo Ortográfico está aí e tem gerado alguma discussão num dos posts recentes então em acho que está na altura de o abraçar. Mas eu não gosto de fazer as coisas por meias medidas, prefiro pegar no Acordo e subir a parada. Eu acho que se o objectivo do AO é simplificar, então não estamos a simplificar o suficiente.

Há muito mais por onde simplificar a grafia do Português e se vamos fazer esse compromisso, então vamos até ao fundo, adoptemos o Acordo Macacográfico.

Português é logo um bom exemplo: para que serve aquele U ali? Portugês devia servir perfeitamente e assumimos assim a dupla valência do G e já estamos a simplificar… “Algidar”, “geto”, “gelra”, muito melhor.

Aliás, o U mudo pulula na nossa língua, sem qualquer (lá está ele), necessidade. Nada mais simples: removem-se todos os U mudos e podemos passar a escrever “qualqer” e “quaisqer” e mesmo “qe”. Simples, não?

Agora vejamos o S e o Z. Que grandes confusões, temos duas letras, mas uma delas serve perfeitamente a função da outra, já qe S serve de Z, por exemplo, em “coser”, em “casa” ou em “mesa”. Não precisamos da letra Z para nada e com esta, até aligeirei o próprio alfabeto.

Assim, proponho qe se passe a escrever “sero” em vez de “zero”, o contexto tem obrigação de tratar do resto. Qualqer pessoa perceberia perfeitamente qe o James Bond é o Agente Sero Sero Sete.

Falemos de outra letra: o X. Nem é precisa muita imaginação para perceber qe o X serve perfeitamente para substituir todos os sons “ch” da nossa língua. Para qê gastar dois caracteres, quando se pode usar apenas um?

“Xapéu”, “Xuva”, “Xatear”, “Xave” e “Xoco frito” não são palavras legíveis? Com este novo acordo, é sempre a poupar. E por falar em poupar, porqe é qe precisamos de “ou” quando temos um acento – o tal qe nem sempre é preciso, mas qe aqi até dá jeito – o circunflexo?

Podemos passar a escrever “Pôpar”, “Ôtão” e mesmo “Ô”, em ves de “ou”. (nota, “ves” está escrito ao abrigo do novo Acordo Macacográfico).

Mas o leitor mais atento terá notado qe ali atrás usei dois S. Qe grande desperdício de letras. Então um não basta? E mais digo: aproveitamos, se o S serve de si próprio bem como de Z então também substitui facilmente o Ç e podemos passar a escrever “Pasou”, “Casador” (evidentemente, aqele qe vai à casa) e “Serviso”.

Mas a simplificasão não fica por aqi: é confuso que tenhamos duas letras para servir de S, já qe o C também o faz, asim, sugiro que apenas o S sirva de S e mais nada. Podemos asim escrever “Anunsiar”, “Séu” e “Insidente”. Qe simples, não é?

Cabe a cada um de nós faser avãsar a nosa lingua. Devemos cõtribuir ativamente para qe, dia após dia, o portuges se simplifiqe e este Acordo Macacográfico ainda não vai lonje o suficiente. Á muito por faser: temus letras inuteis penduradas no fim de palavras como “Cabe”, no inisiu deste parágrafu, qe podia ser “Cab” e xegava. Usamus o E quando pudíamus usar o “I”, temus várias letras qe não levam til i qe, levandu, cõtribuiriam muito para a desejada simplificasão, caso do E e do I.

I, finalmente (um E com til aqi pôpava-nos um N), temus demasiadus asentus na nosa lingua qe mais nao fasem qe complicar.

É com 1 prufundu sentidu d responsablidad qe terminu est post i deixu pra postridad a mnha pruposta d 1 Acordo Ortugraficu qe sirva nao so u intrese dazeditoras ô deste ô aqel pais lusofunu, mas sim todus aqels qe, nus 5 continents, falam diariament a lingua de luis vas de camois!

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Corn Flakes

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

O carbono era leve. Era decididamente leve.

Fred corria aparvalhadamente pelo deserto com a malinha do carbono na mão, com medo dos snipers, mas consciente que não tinha outra hipótese que não fugir. Fugiu durante horas, em zig-zag, por causa dos snipers, claro. Correr em zig zag na areia era tudo menos fácil e se quisesse ser completamente honesto consigo próprio, acabaria por concluír que preferia beber uma cerveja e depois levar um tiro do que evitar o tiro completamente.

Ao fim de bastante tempo, embora não ainda o suficiente para sair do alcance das miras, escorregou e caiu por uma duna abaixo, os dedos firmes na mala do carbono. Os dentes rangiam-lhe. Sob os seus pés, ao fundo da encosta, abriu-se um buraco por onde caiu.

Aterrou num túnel e virando a cabeça rapidamente de um lado para o outro, como um Pardal, certificou-se que não haviam miras laser em lado nenhum. Não haviam mesmo.

Investigou o túnel. Tinha uma direcção, dois sentidos, nada de estranho para um túnel. Piscou os olhos horizontalmente, como lhe era habitual nestas situações e avançou para um dos lados, o que lhe parecia ser o sentido certo, pelo menos, num certo sentido. Passados 45 minutos, pernas cansadas e mala do carbono ainda e sempre leve, deu com uma cidade. Havia uma grande caverna e lá dentro um lago e à beira do lago uma cidade. Nada de muito grande, doze ou quinze casas, três cavalos e um bimotor. O habitual para cidades subterrâneas.

Aproximou-se com o intuito de tentar obter alguma informação de como poderia seguir para Gundmanshian, onde pretendia vender o carbono.

Os habitantes da cidade eram canibais e rapidamente trataram de preparar um grande jantar. Fred iria ser o prato principal, levemente temperado com vinagre de arroz, raíz de gengibre, sal e piri-piri e acompanhado de um belo arroz, solto, com pedacinhos de ervas que cresciam na encosta sulfurosa de um dos lados da caverna.

Fred não podia deixar de apreciar o gosto culinário deste povo, porém, com uma valiosa entrega de carbono para fazer, não dava jeito mesmo nenhum ser comido. Talvez noutra altura.

Curiosamente os habitantes tinham uma opinião diferente e o caso ficou bastante complicado de resolver. Fred tinha uma Glock, mas os habitantes ainda eram bastantes e tinham as suas próprias armas, nomeadamente belas lanças esculpidas pelos artesãos, que orgulhavam este povo de tal forma que estavam constantemente a insistir para que Fred visse as pontas afiadas de bastante perto.

Quando menos se esperava (será que se esperava de todo?), as gaivotas fascistas entraram pelo Norte e iniciaram um ataque feroz sobre a pequena cidade. Não deixaram nada intacto e prenderam todos os habitantes. Fred, sentiu-se um pouco aliviado.

Era precisamente às gaivotas fascistas que tinha que entregar o carbono.

– Tenho o carbono! – gritou na direcção de Vítor Galvão, o director-geral das Gaivotas Fascistas. – Está estupidamente leve, não percebo porquê, deu-me um trabalhão dos diabos a fugir dos snipers.

– Nós sabemos, como achas que te encontrámos? – respondeu a gaivota.

– Claro, que parvo, nem me ocorreu… Por acaso não têm nada que se beba? Estou mortinho por uma Imperial.

– Hum… Vamos ao Carvalhal, ao pé da Fronteira, ver se bebemos qualquer coisa também, porque estamos esgotados, eles não têm é imperial, são muito republicanos.

Fred não se preocupou e passado um bocado, após o fuzilamento dos canibais, estava sentado à mesa com o Vítor Galvão, o Rodrigo Santana e o Manfredo Quizaks, mostrou-lhes o carbono.

– Excelente produto… – comentou uma das Gaivotas – Isto vai dar para montes de coisas.

Rodrigo já mastigava um pouco do carbono.

– Pelo menos parece bastante melhor que o anterior, que nos trouxe o Carlos, tivemos que o matar e mandar prender. Tu estás com sorte – sublinhou Galvão com um dedo no ar. – O produto é bom e vamos pagar-to e deixar-te ir embora.

Fred amarfanhou a carcaça com torresmos com a mão esquerda e deu-lhe uma dentada certeira. Mastigou três vezes.

– E o pagamento? – perguntou, firme, mas com uma gota de suor na tempora direita.

– Não te preocupes Fred… O Estado não esquece um bom serviço. – destes assuntos era Manfredo que falava, com a sua voz rouca e intimista – Nas traseiras encontrarás um camião com 400 mil caixas de Corn Flakes, tal como pediste… mas terás que ter uma coisa em conta.

– Sim…?

– O prazo de validade, vais ter que comer tudo em cerca de 2 meses, foi o melhor que pudemos arranjar.

– Bah. – Fred encolheu os ombros, não seria a primeira vez que despachava um pagamento em menos de dois meses, acontecia-lhe constantemente.

As Gaivotas montaram e partiram a galope de volta à Capital, Fred deixou uma nota de 20 Marrecos em cima da mesa e sorriu. Nas traseiras, o camião ronronava amigavelmente.

Só muito depois de ter atravessado a fronteira é que Fred se lembrou de verificar a carga. Que erro dos diabos… logo para um espião bem treinado como Fred. Deitou as mãos à cabeça.

Não queria acreditar.

O camião estava cheio de Chocapic. Nem sinal de um Corn Flake.

É o que acontece quando nos metemos com Gaivotas. Especialmente fascistas.

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A vacina da gripe A

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Tal como informei atempadamente, não fosse a imprensa sensacionalista, perdão, a comunicação social, querer cobrir o evento, fui recentemente vacinado contra o vírus da gripe H1N1.

A vacina consta de uma injecção intra-muscular, dada no deltóide esquerdo, se a anatomia não me falha. É uma simples picada para pessoas normais e uma horrenda experiência de mutilação para aqueles esquizitinhos que têm medo de agulhas.

O líquido causa algum desconforto a entrar, mas nada de violento – uma pequena pressão.

Depois, claro, as tonturas, vómitos e ataques de caspa incontroláveis. Tentei por-me de pé, mas, incapaz, tombei espumando da boca.

Enquanto tentavam segurar-me, o meu corpo convulsionava violentamente e os meus olhos empalideceram para um cinzento esbranquiçado aterrador.

Fui injectado dezenas de vezes com sedativos, sem qualquer resultado e foi então que a minha fisionomia começou abruptamente a alterar-se perante o olhar estupefacto do pessoal de enfermagem, médicos e auxiliares do centro de saúde: à vez, protuberâncias ósseas e deformidades musculares rompiam através da minha roupa frágil perante tão repulsiva mutação.

O meu corpo, tomado pelos efeitos hediondos – não da vacina – mas dos misteriosos adjuvantes desenvolvidos pela CIA, duplicou ou, quiçá, triplicou de volume, assumindo uma aparência dantesca ou como se diz por aqui, “de meter medo aos cães”.

Por esta altura, claro, já o edifício estava cercado pela Companhia de Operações Especiais, armada com a mais recente tecnologia de combate a anomalias mutantes e monstruosidades diversas o que só demonstra – claramente – que esta vacina está a ser produzida em conluio com os Governos internacionais, pelas farmacêuticas que sabem bem o que se esconde por trás da designação H1N1 – na verdade HINI, um velho truque de substituição da letra i pelo numeral 1 – que significa nada menos que Humanos Inibidos e Neutralizados por Injecção.

Claramente, o meu caso teve alguns efeitos secundários.

Usando armamento que só pode ser classificado como futurista (sem dúvida obtido nos destroços da nave alienígena recuperada no Novo México em 1947), gasearam-me e levaram-me para um laboratório secreto, ali para os lados de A-dos-Cunhados.

Entretanto e depois de inúmeros testes que sem dúvida permitirão ao Governo apurar esta fórmula de controlo de mentes, nomeadamente eliminando os efeitos secundários ligeiros que eu senti, fui devolvido à vida do dia a dia com uma valente dor no braço e sem qualquer espécie de subsídio compensatório!

E andamos nós aqui a pagar impostos…

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E porque não?

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Inclinou-se, apoiando-se no gradeamento da varanda. Sentia o vento cortar-lhe a face e a roupa era decididamente inadequada à descida de temperatura que se verificara com o anoitecer. Olhou a paisagem da cidade, sem a ver. Olhou, simplesmente, com os olhos vazios, um canal directo para a alma; o que quer que ela fosse, onde […]

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O carbono era leve. Era decididamente leve. Fred corria aparvalhadamente pelo deserto com a malinha do carbono na mão, com medo dos snipers, mas consciente que não tinha outra hipótese que não fugir. Fugiu durante horas, em zig-zag, por causa dos snipers, claro. Correr em zig zag na areia era tudo menos fácil e se […]

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