Michelle

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Por volta do fim do Verão de 1992, saí de casa para ir buscar a minha namorada e ouvi miar insistentemente. Quando voltei com ela, os miados continuavam e tentámos perceber do que se tratava.

Era uma gata minúscula, enfiada na suspensão de um carro. Uma outra rapariga que passava enfiou as mãos lá dentro e tirou-a, entregando-ma. Aquele momento em que podia ter deixado a gata na rua ou tomado a decisão que acabei por tomar, marcou os 20 anos seguintes da minha vida.

A Michelle tinha pulgas. Muitas pulgas. Há um vídeo da família toda de volta dela, a catá-la. Um video feito com uma camcorder do tamanho de um autocarro, foi há muitos anos, eu tinha 19, vivia com os meus pais e durante os cinco anos que ainda vivi com os meus pais depois disso, a Michelle dormiu comigo todas as noites.

Depois saí de casa e a Michelle foi comigo. Entretanto, tornou-se uma de seis gatos na nossa casa, mas foi sempre a Michelle. Era a mais inteligente deles todos e mesmo quando começou a envelhecer, ainda impunha respeito nos mais jovens.

Nos últimos dois ou três anos a Michelle envelheceu marcadamente. Perdeu toda a gordura e muita massa muscular; o pêlo perdeu parte da suavidade e um sacana de um pólipo com que já lidava há muito tempo, num ouvido, proporcionou-lhe otites atrás de otites incomodativas.

Desenvolveu uma insuficiência renal, problema típico nos gatos. Durante umas semanas, dei-lhe medicação diária e injectei-a subcutaneamente com soro. Até que desisti. Achei que a Michelle já não ia viver muito tempo e que aquela meia-hora diária de agulha espetada nas costas, com ela a tentar fugir, a agulha a soltar-se e eu a ter que voltar a espetar, na esperança de lhe melhorar a qualidade de vida, estava na verdade a piorar-lhe a qualidade de vida.

Aceitei que ela não duraria muito mais, mas que as injecções de soro eram pior desconforto do que simplesmente deixá-la em paz.

Acho que fiz bem. Mas contra todas as expectativas, a Michelle viveu mais dois anos. E esteve bem, activa, reivindicativa. Entretanto mudámos de casa e ela rapidamente aprendeu o padrão de exposição solar. De manhã, por volta das 10 já estava encostada ao muro do terraço, porque sabia que o sol não tardava muito a bater ali.

No fim de semana passado, notámos que a Michelle estava muito prostrada. Apesar de já estar muito, muito velha, com um aspecto muito degradado, a verdade é que ainda assim notámos que estava pior.

Fizemos-lhe uma cama e um caixote afastada dos outros, na cozinha e foi onde passou os últimos dias. Tal como a nossa velhota gata, Pantufa, que morreu com 16 anos, a Michelle desistiu ao fim de dois dias e simplesmente ficou deitada, recusou comida e água e morreu durante a noite de quinta, para sexta-feira, 27 de Julho. Calculamos que teria acabado de completar 20 anos, ou estaria perto disso, o que é uma longa vida para um gato. Gosto de pensar que foi uma vida longa e feliz.

A última foto que tirei da Michelle, mesmo quando começámos a notar que estava a ir-se abaixo.

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8 comentários a “Michelle”

  1. Pedro Melo says:

    Compreendo-te bem… Com cerca de 10 anos a minha mãe trouxe lá para casa uma gatinha com algumas semanas. Demos-lhe o nome de Tigresa e veio fazer companhia ao Micha, um siamês que já por lá andava.

    A Tigresa acompanhou-me a adolescência toda. Todas as manhãs esperava pacientemente que eu acabasse os meus KornFlakes para beber um fundo de leite que eu sempre lhe deixava.

    Viveu 24 anos.

  2. Bruno says:

    Eu tenho uma gata. Não gostava de gatos desde que, ainda muito miúdo, a gata de uma vizinha matou o meu canário preferido. Ainda assim, após muitos anos de algum repúdio por gatos ofereci à minha mulher uma pequena gatinha. Veio para minha casa com 2 meses. Pequenina, frágil e com um ar muito dócil.

    Quanto foi esterilizada teve um inesperado edema pulmonar e descobrimos que a Ísis tem uma cardiomiopatia (na verdade, são duas deficiências cardíacas). Felizmente, com o crescimento e a medicação, hoje com sete anos apresenta valores normais… melhor progressão seria impossível. Todos os anos quando vou ao veterinário e oiço estas notícias fico genuinamente feliz.

    Eu, que não gostava de gatos, já tenho dificuldade em imaginar-me um dia sem esta companheira. No entanto, estou certo que esse dia chegará.

  3. Pedro, tive uma gata que faleceu com 12 anos por causa de um cancro. Tinha eu 24 anos quando me deixou, até aquele ponto tinha passado metade da minha vida comigo e o mais difícil não foi a morte dela, mas sim a decisão de a ter que a mandar abater para que não sofresse mais.

    Há uns anos tive outra gata, a Shamika, que nos foi oferecida como prenda de casamento, uma persa linda e inteligente, com um feitio de “dondoca” mas que conseguia demonstrar que nos amava todos os dias. Deixou-nos com 3 anos devido a uma doença cardiaca congénita (http://www.odrakir.com/blog/2010/04/11/rip-shamika/). Hoje temos a Leia, que ainda foi companheira de brincadeiras da Shamika, felizmente está bem de saúde e tem sido uma aventura para ela descobrir o novo ser cá da casa, o nosso filho Duarte.

    Como te disse há dias, é lembrar tudo o que de bom nos deixam, a mágoa e o sofrimento são inúteis nestas alturas.

    Abraço!

  4. cris says:

    só que os tem e gosta realmente deles é que sabe o que custa. fazem parte da família e deviam durar mais que nós. ou pelo menos não sofrer.

    em setembro do ano passado escrevi isto (perdoa o tamanho):

    “na sexta despedimo-nos da kuska, depois de 15 anos.
    em março apareceu-lhe um alto na carinha, como se fosse um abcesso. fomos com ela à veterinária e, ao fim de algumas consultas, antibiótico oral e injectável, tiraram-lhe o dente. disseram que a infecção estava mais espalhada do que se pensava e já tinha atingido o palato. mais antibiótico (durante semanas a fio) e estava na mesma. cada vez pior, até, uma vez que o beicinho começou também a inchar e o hálito não era dos melhores. mais antibiótico, mais anti-inflamatório.

    fomos a outro vet que nos pôs os pontos nos ‘i’. o mais provável era ser um tumor maligno e tinhamos 2 hipóteses: ou se tentava a operação mas que devia retirar parte do maxilar e lá se ía a qualidade de vida nos últimos tempos, ou não faziamos nada e deixavamos andar até acharmos que ela já não estava em condições.

    depois de 1 anestesia geral e 2 sedativos num curto espaço de tempo, para um corpinho de 15 anos, achámos melhor não voltar a fazê-la passar por isso, porque o risco de não voltar a acordar era muito grande.

    resumindo, as células malignas foram-lhe ‘comendo’ a bochecha, ao ponto de quase se ver não havia pêlo nem bigode e eram pingos de sangue e baba ensanguentada por toda a casa. a minha mãe cobriu tapetes e sofás com panos para ser mais fácil de limpar.

    o olho daquele lado começou a ficar cada vez mais fechado até que um dia cheguei lá a casa e a pupila praticamente não reagia às diferenças de luminosidade.

    enquanto estive fora o outro olho foi pelo mesmo caminho. a minha mãe de 3h em 3h pegava nela e punha-la no caixotinho para fazer xixi. deixou de comer. só bebia água. ainda assim, vinha chegou a andar pela casa aos trambolhões só para ir para junto dos meus pais. podia estar mais confortável noutro sítio, mas assim estava acompanhada. na semana passada já nem água queria. os meus pais mentalizaram-se do inevitável.

    na sexta à noite fui com o rapaz e a minha mãe ao veterinário e não fomos capazes de ficar a ver. a minha mãe deixou a mantinha dela e um bilhete que o meu pai escreveu. viémos embora e eu passei o resto da noite a falar e a dizer disparates para eles não se irem abaixo. provavelmente foram quando saí, mas fiz o que pude. sou assim, nestas situações: a palhacita de serviço.

    a kuska chegou a nossa casa no dia 10 de dezembro de 1996. veio da quinta de uns colegas do meu pai e foi a minha prenda de anos – é óbvio que rapidamente se tornou muito mais que isso. passou a fazer parte da família.

    lembrou-me de, no início, enquanto não escolhia nome para ela, lhe chamar apenas ‘gata’ mas depois quando cheguei à conclusão de que não havia nome que se adequasse melhor que ‘kuska’, passei dias e dias a pegar-lhe ao colo (quando ela deixava) e a dizer-lhe o nome ao ouvido, baixinho. acho que resultou, porque a minha mãe chegou a dizer que a gata respondia mais depressa ao nome que eu ;)

    cada um de nós tinha uma função específica para ela: a minha mãe era para a papinha (e limpezas afins), o meu pai para colinho no inverno e para se rebolar na camisa dele quando voltava do trabalho (javardice!), a minha avó para os mimos (a única que lhe conseguia fazer todas as festinhas que queria!) e eu para a conversa. sim, conversa, porque sempre lhe disse até logo antes de sair de casa e olá quando regressava e ela sempre me respondeu. levantava a cabecinha (se estivesse enroscada, na sornice) e miava.

    conseguiamos distinguir perfeitamente o miado de fome, de rabugice, de ‘olá’, de ‘bicho’.

    quando era mais novinha, a minha mãe ía adormecê-la para o meu quarto. ela deitava-se na minha cama, no meio de peluches e almofadas, a minha mãe ía para o computador jogar solitaire ou coisa parecida e quando a kuska estava a dormir, ela desligava o computador. muitas vezes adormeceu também só com música a tocar. como nós.

    ainda por essa altura, ela dormia na cozinha. como a minha avó anda de noite pela casa às escuras, tinhamos medo que pisasse ou tropeçásse na gatinha e queriamos evitar desgraças. quando o dia começava a romper, miava ou batia na porta a dizer que já estava na hora. não me consigo lembrar da altura em que a deixámos andar à vontade, mas a verdade é que nunca houve problemas. passava a noite na cama da minha avó e na nos meus pais, dependendo da temperatura. nunca foi dormir comigo (mas gostava de se rebolas nos meus sapatos mal cheirosos). foi-lhe dito uma vez que não se pisam os lençois nem a toalha de mesa. foi o suficiente. arranjava grandes esquemas e equilibrismos, ficava sentada nos últimos centímetros quadrados de colcha, mas não punha um pezinho no lençol. podia estar um sol radioso mas se o seu poiso em cima da mesa de refeições tivesse ocupado com a toalha, ela não saltava (mas fazia questão de mostrar que tinha ficado chateada, amuando, virando-se de costas para nós e olhando de lado).

    aos 3 anos teve uma broncopneumonia, que a levou ao vet todos os dias durante uma semana para injecção de antibiótico (clamoxil, como eu tomei em pequenina). quando começou a fazer cios consecutivos, tirara-lhe os ovários e acho que foi nessa altura que a traumatizaram (não estaria bem anestesiada??), porque nunca mais achou piada a passear na caixinha de transporte. a verdade é que sempre que ouvia a voz da vet, depois disso, rosnava. quer dizer, não quer dizer que antes gostasse de estar encaixotada, mas desde essa altura (era ela novinha) sempre que via a caixa assoprava, fugia, não podia ver a minha mãe de mala e sapatos que se ía esconder, a pensar que a íam agarrar e meter na caixa.

    desde que ficou doente tivemos cenas tramadas para a pôr na caixinha. desde eu ligar à minha mãe quando saía de casa a dizer para se preparar, e quando eu lá chegava já o meu pai estava com ela na rua, até o hugo se fechar com ela na cozinha, nós cá fora e parecia que a estavam a torturar, quando na versade ela estava numa ponta e ele na outra – só fita! só que tudo isto fez com que ela começasse a associar a minha presença (e do hugo) com a saída stressante. deixou de me ‘falar’, sempre que chegávamos fugia, ía-se pôr em sítios estratégicos para conseguir escapar mesmo que aparecessemos de direcções diferentes… no entanto, na semana passada, já não era a nossa kuska que estava ali. quando a minha mãe lhe pegou e a pôs na caixa, não se manifestou. nem ai nem ui. foi como se a tivessem passado de um sofá para outro. estava na hora. e custou horrores.”

  5. Carlos Fonseca says:

    Conheço bem tudo isso que falas. Gatos (e animais em geral) são… you know.

  6. Foi longa e feliz, aposta, desde o momento que te a menina ta passou para a mão.

  7. pachita says:

    Ela teve muita sorte em vos ter e ser vossa durante tantos anos. Tenho a certeza de que foi muito feliz.

    O que custa é quando se vão embora. O vazio que deixam é, por vezes, insuportável.

    Mas basta pensar nos bons momentos e tudo se torna melhor.

    Só quem tem, ou teve, gatos (ou cães- apesar de achar que os cães são outra liga) é que pode compreender….

    Mais uma vez, um abraço.

Responder a pachita

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